Jacques-Alain Miller em
Página 12
Enguia
O autor examina
as íntimas, esquivas e elétricas relações entre a psicanálise e a política: se
“a psicanálise é exatamente o reverso da política”, acontece que “o inconsciente
é a política”. Além do mais, “indubitavelmente, a psicanálise não é
revolucionaria”, mas “é subversiva” e “produz danos sensacionais na
tradição”.
Por Jacques-Alain
Miller *
O inconsciente
não conhece o tempo, mas a psicanálise, sim. A psicanálise dá o que Stendhal
chamava “a audácia de não ser como todo mundo”. Agora, hoje em dia, todo mundo
aspira não ser como todo mundo. Este era, indubitavelmente, o caso de Lacan e
seu modo de não ser como todo mundo foi, por outro lado, frequentemente
criticado. Com relação à política, ele ensinava, sobretudo, a desconfiança a
respeito dos ideais, dos sistemas, das utopias que semeiam o campo político. Não
acreditava nas leis da história. Nenhuma palavra permite crer que mantinha a
ideia de uma cidade radiante, esteja esta situada no passado ou projetada para o
futuro. Nem nostalgia, nem tampouco esperança, mas uma grande sobriedade a
respeito da política, acompanhada de numerosos comentários que iam desde a
ironia até o cinismo, marcados por sarcasmos e provocações, que sublinhavam que
a política é, ao mesmo tempo, cômica e assassina. Das Memórias do cardeal de
Retz, havia retido o seguinte: “Sempre são os povos que pagam o preço do
acontecimento político”. Descrevia também o conquistador, chegando sempre com a
mesma ordem na boca: “Ao trabalho!” Para Lacan, a alienação ao trabalho era um
fato de estrutura, mas que não introduzia uma revolta coletiva propriamente
dita, a luta de classes, encorajando os explorados a combaterem para
converterem-se nos exploradores de amanhã. Resumindo, diríamos que no campo
político, Lacan era contra tudo o que está a favor.
Ademais, a
política procede por identificações. Manipulando palavras-chave e imagens, busca
capturar o sujeito enquanto que o próprio da psicanálise consiste em operar ao
inverso, contra as identificações do sujeito. Uma a uma, a cura as desfaz, as
faz cair como as capas de uma cebola. Confrontar o sujeito com seu próprio
vazio, permitindo-lhe, assim, limpar o sistema que, apesar disso, ordenava suas
lições e seu destino. Neste sentido, a psicanálise é exatamente o avesso da
política.
Mas, o
inconsciente é outra coisa. Lacan dizia habitualmente que “o inconsciente é a
política”. Não é uma substância escondida no indivíduo, em seu mundo fechado,
que se trataria de forçar. O inconsciente é uma relação e se produz em uma
relação. É por isso que temos acesso a ele em uma relação com esse outro que é
um analista. Na vida psíquica do sujeito, um outro já está sempre implicado como
modelo, objeto, sustentáculo ou obstáculo. A psicologia individual é, de
entrada, psicologia social Se o homem é um animal político, é por ser, ao mesmo
tempo, falante e falado pelos outros. Sujeito do inconsciente, recebe sempre de
um outro, do discurso que circula no universo, as palavras que o dominam, que o
representam e que o desnaturalizam também.
A psicanálise
ensina algo sobre o poder, a influência que se pode exercer. Não é necessário
muita coisa para se impor: essencialmente algumas palavras bem escolhidas.
Convertida em uma indústria capital para o consumo, a publicidade tirou
amplamente, proveito disto. Nas democracias como as nossas, a política já não
pode se dirigir àqueles que ainda chamamos cidadãos, sem passar pela
publicidade. O marketing político transformou-se em uma arte, até mesmo em uma
indústria que produz um monte de siglas, slogans, emblemas, pequenas frases. E isto, em função dos dados
coletados por pesquisas de opinião, sondagens agudas e grupos de discussão. Escutar o que ali se diz,
serve, em primeiro lugar, para cernir os termos susceptíveis de serem impostos à
opinião. É assombroso que, longe de se ocultar estas manipulações, exibem-nas.
Informado da existência das mesmas, o público quer conhecê-las, visitar as
bambolinas. Não apenas se põe em cena a decoração, mas também se converte em
espetáculo, o avesso da decoração. Ao menos um dos avessos da decoração.
Os que
praticam a política são os primeiros a saberem que esta não é uma questão de
grandes ideais, mas de pequenas frases. Eles se organizam com isso e os cidadãos
parecem querer que assim seja. Que a política não seja mais idealizada não é uma
desgraça da democracia. Sem dúvida, este é o seu destino, sua lógica e, se assim
posso dizer, seu desejo. A decadência generalizada do absoluto no campo político
é notória: algo bom em oposição ao fanatismo, mas que não abre a via à discussão
racional entre cidadãos desapaixonados. Estamos no reino da opinião. O debate
público se desenvolve sobre um fundo de descrença, de engano, de manipulação
declarada e consentida.
Esta é a regra
do jogo, deplorá-lo também faz parte dele. Ninguém mais denuncia isto como
abjeto, exceto alguns maledicentes ou imprecadores que, por outro lado,
reduzimos à impotência. Se por acaso algum deles têm talento, felicitamo-nos do
condimento que aporta o debate público. Faz parte do mesmo movimento da
civilização que revela, sem descanso, o caráter artificial, construído, de todas
as coisas neste mundo: o laço social, as crenças, as significações. A
psicanálise participa disto, já que nenhum outro discurso tem sido mais potente
em sacudir os semblantes da civilização.
Aquele que
pratica a psicanálise deve, logicamente, querer as condições materiais de sua
prática. A primeira é a existência de uma sociedade civil stricto sensu, distinta do Estado. A psicanálise
não existe ali onde não é permitido praticar a ironia. Não existe ali onde não é
permitido questionar os ideais sem sofrer por isso. Em consequência disso, a
psicanálise é claramente incompatível com toda ordem totalitária. Ao contrário,
a psicanálise faz causa comum com a liberdade de expressão e com o pluralismo.
Enquanto que a divisão do trabalho, a democracia e o individualismo não tiverem
produzido seus estragos, não haverá lugar para a psicanálise.
O liberalismo
não é, no entanto, a condição política da psicanálise. Nos Estados Unidos, por
exemplo, se a psicanálise lacaniana interessa aos intelectuais, sua prática real
só subsiste. Segundo a opinião de Freud, a psicanálise se desnaturalizou ao
atravessar o Atlântico; os imigrantes que o difundiram deixaram a Europa para
trás como uma má recordação e só lhes restou conformarem-se com os valores do
american way of life. Esta expressão caiu em desuso, já que este estilo de vida
está se tornando, cada dia mais, o nosso. Se o divórcio das sensibilidades e dos
costumes entre Estados Unidos e França, incluindo toda a Europa, pôde,
certamente, cristalizar-se a nível político, não impediu, de modo algum, a
americanização em marcha.
Assim, como
tal, a psicanálise é revolucionária ou reacionária? Trata-se de um Jano, uma
isca, que se utiliza explicitamente nos debates da sociedade nas quais se faz a
psicanálise dizer uma coisa e o seu contrário. Mas, sua doutrina só requer que
um analista esteja ali, antes de tudo, para psicanalizar e, subsidiariamente,
para fazer avançar a psicanálise e difundi-la no mundo. Melhor ainda se para
isto, intervém no debate público.
Indubitavelmente, a psicanálise não é
revolucionária. Sem dúvida, dedica-se mais a por em valores invariantes do que a
depositar suas esperanças em mudanças de ordem política. Pretende operar a um
nível mais fundamental do sujeito, onde os pontos do espaço-tempo estão em uma
relação topológica e já não mais, métrica. O mais distante se revela, de
repente, o mais próximo. Um psicanalista é, de bom grado, partidário do “Nada
novo. Quanto mais isso muda, mais é a mesma coisa”, professa o psicanalista.
Salvo que talvez possa piorar, se alguma vez acreditou-se que podia ser melhor.
A psicanálise
não é revolucionária, mas é subversiva, o que não é o mesmo, quer dizer, vai
contra as identificações, os ideais, as palavras-chave. É bem conhecido que nos
preocupamos quando alguém próximo começa uma análise: tememos que deixe de
honrar a seu pai, a sua mãe, seu parceiro e a seu Deus. Alguns, por outro lado,
aspiraram, sem êxito, a uma psicanálise adaptativa, muito mais que
subversiva.
Não nos
enganemos, “quanto mais isso muda e mais é a mesma coisa”, mas muda de todo
jeito! Que continue sendo a mesma coisa significa que o que se ganha por um
lado, se perde pelo outro, e isto não se reabsorve. Se é subversiva, nem por
isso a psicanálise é progressista nem reacionária. Seria, então, sem esperança?
Digamos que uma psicanálise opera mais a partir da esperança. Procede ao modo de
ablação da esperança e um certo alívio resulta disso.
Não apenas os
psicanalistas não são militantes da psicanálise – exceto às vezes, e não
necessariamente, para sua felicidade – mas estão mais propensos a aborrecerem-se
com os militantes. O que resulta disso é que os psicanalistas se mostram
frequentemente muito sobrecarregados por sua operação que sacudiu todos os
semblantes, em particular, todas as normas que moderavam a relação sexual,
inserindo-a na família e na procriação. Os psicanalistas queriam que os
semblantes de antes resistissem até o fim dos tempos. Longe disso! A psicanálise
produziu danos sensacionais na tradição. A estes desastres, somaram-se as
possibilidades inéditas que oferecem os avanços da biologia, da procriação
assistida, a clonagem, a decifração do genoma humano, a perspectiva de que o
homem mesmo se converta em um organismo geneticamente modificado. É claro que o
Nome-do-Pai já não é mais o que era.
* Ex-presidente da Associação
Mundial de Psicanálise. O texto é transcrição da conferência “Anguille en
politique”, proferida na rádio France-Culture em 2005; traduzida para o espanhol
por Daniela Fernández, especialmente para Página/12, quando da visita do autor,
que participa do VIII Congresso da Associação Mundial de Psicanálise, “A ordem
simbólica no século XXI não é mais o que era”, que acontece nestes dias em
Buenos Aires.
Tradução: Maria Cristina Maia
Fernandes