domingo, 27 de maio de 2012

Mulheres de Hoje, figuras do feminino no discurso analítico

Texto públicado no site http://www.mulheresdehoje.com.br/evento.asp

A comédia dos sexos, que tem sua versão lacaniana mais acabada no Seminário XX, é uma clínica em que homens e mulheres buscam sua posição sexual a partir de uma alteridade que nunca se transforma em complementaridade. Não se trata, portanto, apenas do falo como o triunfo do cômico, mas da ironia do objeto. Assim, homens e mulheres jamais se completam sexualmente diante do Outro sexo. Homens e mulheres não formam casais onde há um puro elemento viril, correlato ao falo, e um puro elemento feminino, correlato à castração. Somos todos, independentemente do sexo biológico, afetados pelos restos da operação falo/castração.

Ao pensarmos o feminino hoje, percebemos que há um corte entre o século XXI e o século precedente, corte no sentido de que algo do real fez surgir um acontecimento. De todas as imagens, nenhuma traduziria melhor o real dessa ruptura do que a agonia das torres gêmeas. Com elas foi junto o resto de esperança de uma unificação pelo simbólico. Assim, o mundo em que problematizamos a mulher dispensa consensos, pois o gozo feminino incômodo não mais convoca necessariamente o traço de identificação feminista. É um mundo em que predomina a cacofonia dos discursos e a pluralidade de expressões dos modos de viver a pulsão. O pano de fundo é o matema, proposto por Jacques-Alain Miller,a →$

Há, nesse matema, a escritura de uma nova posição do objeto na civilização, o que não deixou de repercutir nas coordenadas da fantasia masculina. A percepção dessa mudança ecoa no deslocamento que faz Lacan sobre a operação castração. Em 73, no texto Étourdit, ele afirma que o heterossexual é aquele que, independente de seu próprio sexo, ama as mulheres. Aqui, não se trata mais da diferença anatômica entre os sexos. Seu propósito, como diz o próprio Lacan, é revisar a noção de que a função fálica se apoiaria em um “fânero” suplementar ao corpo da mulher para torná-lo um organon específico dessa função. Esse deslocamento não deixa de trazer consequências para o entendimento psicanalítico da vida amorosa, mais precisamente para a distinção entre o “fazer amor” e o “ato do amor”. O primeiro, para Lacan, é da ordem da poesia. Já o “ato de amor” resvala para a “perversão polimorfa do macho”. O homem busca revestir o objeto com semblantes fálicos para não enfrentar o olhar da medusa, velando a castração. Nesse sentido, quando o discurso amoroso – endereçado aos semblantes – fracassa, a mulher cai da condição de Dama e o Um do amor se desfaz. A cena torna-se muda, e o corpo feminino uma montagem de peças avulsas que explodem na internet.


Se Madona era protagonista de uma geração que se hipnotizava com a girl phalus, encontramos em Lady Gaga, alçada pela imprensa papparazi à categoria de ícone da geração atual, uma situação muito distinta. Aqui não podemos mais falar da aliança entre o feminino e o falo. Lady Gaga, ao aparecer na capa da Vogue em um roupa feita de carne crua, demonstra a ironia do sex-appeal bruto do objeto a lacaniano.

 
Como afirma Miller, o gozo se libera da armação significante de sua prisão fálica e ... demonstra-se, ao contrário, que são os objetos a que dão corpo ao gozo. A seguir essa lógica, percebemos que o gozo fálico (-φ) não é mais o único comando do Supereu no Século XXI, o imperativo de gozar incide cada vez mais sobre o gozo de a, sem mediação. Eis que a segunda parte de nosso título nos coloca um desafio: qual a especificidade do feminino no discurso da psicanálise?

A escolha da fotografia de uma mulher para representar nosso XIX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano evoca essa percepção de que a mulher não é mais cortejada por uma discurso e sim pelas lentes cada vez mais presentes na vida cotidiana. Os cabelos esvoaçados fazem dessa mulher uma miragem; mistura de musa e de medusa. Contemplando o mar de Salvador, ela nos esconde seu olhar. O que pode acontecer se ela virar sua face em nossa direção?

Nos dias 23 e 24 de novembro, estaremos compartilhando esse mesmo olhar, tentando descobrir o infinito do mar que esse horizonte alcança. Nosso encontro está marcado no Hotel Pestana, bairro do Rio Vermelho, banhado pelas águas de Iemanjá. Contamos com a presença de todos vocês.
Axé,


Marcelo Veras

Diretor do XIX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano

Lacan, Jacques, Étourdit in Autres Écrits, p. 464. Éditions du Seuil, Paris 2001

Lacan, J. Le Séminaire XX – Encore, p.68, Éditions du Seuil, Paris, 1975

Miller J-A., Introdução à leitura do Seminário 10 da Angústia de Jacques Lacan, in Opção Lacaniana V43, 2005

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Psicanálise e Política

Este texto está no blog  da Escola Brasileira de Psicanálise - Secção São Paulo 




“Anguille en politique” - Jacques-Alain Miller


Jacques-Alain Miller em Página 12
Enguia
O autor examina as íntimas, esquivas e elétricas relações entre a psicanálise e a política: se “a psicanálise é exatamente o reverso da política”, acontece que “o inconsciente é a política”. Além do mais, “indubitavelmente, a psicanálise não é revolucionaria”, mas “é subversiva” e “produz danos sensacionais na tradição”.

Por Jacques-Alain Miller *
O inconsciente não conhece o tempo, mas a psicanálise, sim. A psicanálise dá o que Stendhal chamava “a audácia de não ser como todo mundo”. Agora, hoje em dia, todo mundo aspira não ser como todo mundo. Este era, indubitavelmente, o caso de Lacan e seu modo de não ser como todo mundo foi, por outro lado, frequentemente criticado. Com relação à política, ele ensinava, sobretudo, a desconfiança a respeito dos ideais, dos sistemas, das utopias que semeiam o campo político. Não acreditava nas leis da história. Nenhuma palavra permite crer que mantinha a ideia de uma cidade radiante, esteja esta situada no passado ou projetada para o futuro. Nem nostalgia, nem tampouco esperança, mas uma grande sobriedade a respeito da política, acompanhada de numerosos comentários que iam desde a ironia até o cinismo, marcados por sarcasmos e provocações, que sublinhavam que a política é, ao mesmo tempo, cômica e assassina. Das Memórias do cardeal de Retz, havia retido o seguinte: “Sempre são os povos que pagam o preço do acontecimento político”. Descrevia também o conquistador, chegando sempre com a mesma ordem na boca: “Ao trabalho!” Para Lacan, a alienação ao trabalho era um fato de estrutura, mas que não introduzia uma revolta coletiva propriamente dita, a luta de classes, encorajando os explorados a combaterem para converterem-se nos exploradores de amanhã. Resumindo, diríamos que no campo político, Lacan era contra tudo o que está a favor.
Ademais, a política procede por identificações. Manipulando palavras-chave e imagens, busca capturar o sujeito enquanto que o próprio da psicanálise consiste em operar ao inverso, contra as identificações do sujeito. Uma a uma, a cura as desfaz, as faz cair como as capas de uma cebola. Confrontar o sujeito com seu próprio vazio, permitindo-lhe, assim, limpar o sistema que, apesar disso, ordenava suas lições e seu destino. Neste sentido, a psicanálise é exatamente o avesso da política.
Mas, o inconsciente é outra coisa. Lacan dizia habitualmente que “o inconsciente é a política”. Não é uma substância escondida no indivíduo, em seu mundo fechado, que se trataria de forçar. O inconsciente é uma relação e se produz em uma relação. É por isso que temos acesso a ele em uma relação com esse outro que é um analista. Na vida psíquica do sujeito, um outro já está sempre implicado como modelo, objeto, sustentáculo ou obstáculo. A psicologia individual é, de entrada, psicologia social Se o homem é um animal político, é por ser, ao mesmo tempo, falante e falado pelos outros. Sujeito do inconsciente, recebe sempre de um outro, do discurso que circula no universo, as palavras que o dominam, que o representam e que o desnaturalizam também.
A psicanálise ensina algo sobre o poder, a influência que se pode exercer. Não é necessário muita coisa para se impor: essencialmente algumas palavras bem escolhidas. Convertida em uma indústria capital para o consumo, a publicidade tirou amplamente, proveito disto. Nas democracias como as nossas, a política já não pode se dirigir àqueles que ainda chamamos cidadãos, sem passar pela publicidade. O marketing político transformou-se em uma arte, até mesmo em uma indústria que produz um monte de siglas, slogans, emblemas, pequenas frases. E isto, em função dos dados coletados por pesquisas de opinião, sondagens agudas e grupos de discussão. Escutar o que ali se diz, serve, em primeiro lugar, para cernir os termos susceptíveis de serem impostos à opinião. É assombroso que, longe de se ocultar estas manipulações, exibem-nas. Informado da existência das mesmas, o público quer conhecê-las, visitar as bambolinas. Não apenas se põe em cena a decoração, mas também se converte em espetáculo, o avesso da decoração. Ao menos um dos avessos da decoração.
Os que praticam a política são os primeiros a saberem que esta não é uma questão de grandes ideais, mas de pequenas frases. Eles se organizam com isso e os cidadãos parecem querer que assim seja. Que a política não seja mais idealizada não é uma desgraça da democracia. Sem dúvida, este é o seu destino, sua lógica e, se assim posso dizer, seu desejo. A decadência generalizada do absoluto no campo político é notória: algo bom em oposição ao fanatismo, mas que não abre a via à discussão racional entre cidadãos desapaixonados. Estamos no reino da opinião. O debate público se desenvolve sobre um fundo de descrença, de engano, de manipulação declarada e consentida.
Esta é a regra do jogo, deplorá-lo também faz parte dele. Ninguém mais denuncia isto como abjeto, exceto alguns maledicentes ou imprecadores que, por outro lado, reduzimos à impotência. Se por acaso algum deles têm talento, felicitamo-nos do condimento que aporta o debate público. Faz parte do mesmo movimento da civilização que revela, sem descanso, o caráter artificial, construído, de todas as coisas neste mundo: o laço social, as crenças, as significações. A psicanálise participa disto, já que nenhum outro discurso tem sido mais potente em sacudir os semblantes da civilização.
Aquele que pratica a psicanálise deve, logicamente, querer as condições materiais de sua prática. A primeira é a existência de uma sociedade civil stricto sensu, distinta do Estado. A psicanálise não existe ali onde não é permitido praticar a ironia. Não existe ali onde não é permitido questionar os ideais sem sofrer por isso. Em consequência disso, a psicanálise é claramente incompatível com toda ordem totalitária. Ao contrário, a psicanálise faz causa comum com a liberdade de expressão e com o pluralismo. Enquanto que a divisão do trabalho, a democracia e o individualismo não tiverem produzido seus estragos, não haverá lugar para a psicanálise.
O liberalismo não é, no entanto, a condição política da psicanálise. Nos Estados Unidos, por exemplo, se a psicanálise lacaniana interessa aos intelectuais, sua prática real só subsiste. Segundo a opinião de Freud, a psicanálise se desnaturalizou ao atravessar o Atlântico; os imigrantes que o difundiram deixaram a Europa para trás como uma má recordação e só lhes restou conformarem-se com os valores do american way of life. Esta expressão caiu em desuso, já que este estilo de vida está se tornando, cada dia mais, o nosso. Se o divórcio das sensibilidades e dos costumes entre Estados Unidos e França, incluindo toda a Europa, pôde, certamente, cristalizar-se a nível político, não impediu, de modo algum, a americanização em marcha.
Assim, como tal, a psicanálise é revolucionária ou reacionária? Trata-se de um Jano, uma isca, que se utiliza explicitamente nos debates da sociedade nas quais se faz a psicanálise dizer uma coisa e o seu contrário. Mas, sua doutrina só requer que um analista esteja ali, antes de tudo, para psicanalizar e, subsidiariamente, para fazer avançar a psicanálise e difundi-la no mundo. Melhor ainda se para isto, intervém no debate público.
Indubitavelmente, a psicanálise não é revolucionária. Sem dúvida, dedica-se mais a por em valores invariantes do que a depositar suas esperanças em mudanças de ordem política. Pretende operar a um nível mais fundamental do sujeito, onde os pontos do espaço-tempo estão em uma relação topológica e já não mais, métrica. O mais distante se revela, de repente, o mais próximo. Um psicanalista é, de bom grado, partidário do “Nada novo. Quanto mais isso muda, mais é a mesma coisa”, professa o psicanalista. Salvo que talvez possa piorar, se alguma vez acreditou-se que podia ser melhor.
A psicanálise não é revolucionária, mas é subversiva, o que não é o mesmo, quer dizer, vai contra as identificações, os ideais, as palavras-chave. É bem conhecido que nos preocupamos quando alguém próximo começa uma análise: tememos que deixe de honrar a seu pai, a sua mãe, seu parceiro e a seu Deus. Alguns, por outro lado, aspiraram, sem êxito, a uma psicanálise adaptativa, muito mais que subversiva.
Não nos enganemos, “quanto mais isso muda e mais é a mesma coisa”, mas muda de todo jeito! Que continue sendo a mesma coisa significa que o que se ganha por um lado, se perde pelo outro, e isto não se reabsorve. Se é subversiva, nem por isso a psicanálise é progressista nem reacionária. Seria, então, sem esperança? Digamos que uma psicanálise opera mais a partir da esperança. Procede ao modo de ablação da esperança e um certo alívio resulta disso.
Não apenas os psicanalistas não são militantes da psicanálise – exceto às vezes, e não necessariamente, para sua felicidade – mas estão mais propensos a aborrecerem-se com os militantes. O que resulta disso é que os psicanalistas se mostram frequentemente muito sobrecarregados por sua operação que sacudiu todos os semblantes, em particular, todas as normas que moderavam a relação sexual, inserindo-a na família e na procriação. Os psicanalistas queriam que os semblantes de antes resistissem até o fim dos tempos. Longe disso! A psicanálise produziu danos sensacionais na tradição. A estes desastres, somaram-se as possibilidades inéditas que oferecem os avanços da biologia, da procriação assistida, a clonagem, a decifração do genoma humano, a perspectiva de que o homem mesmo se converta em um organismo geneticamente modificado. É claro que o Nome-do-Pai já não é mais o que era.
* Ex-presidente da Associação Mundial de Psicanálise. O texto é transcrição da conferência “Anguille en politique”, proferida na rádio France-Culture em 2005; traduzida para o espanhol por Daniela Fernández, especialmente para Página/12, quando da visita do autor, que participa do VIII Congresso da Associação Mundial de Psicanálise, “A ordem simbólica no século XXI não é mais o que era”, que acontece nestes dias em Buenos Aires.
Tradução: Maria Cristina Maia Fernandes

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Quebrando Tabu - edição 11.05.2012

Esta foi a primeira colaboração para a coluna "Quebrando Tabu" do caderno Na Mira do jornal O Estado do Maranhão.


Dúvidas sobre sexo? Quem não as tem? Mas muitos não têm coragem para perguntar e o resultado é a criação de um tabu, isto é, de uma ideia preconcebida e nem sempre correta. No início deste quarto ano do nosso caderno Na Mira, queremos ajudar a quebrar tabus e ajudar no melhor conhecimento sobre sexo e sobre você mesmo.
Nosso espaço “Quebrando Tabu” se destina a um bate papo sobre coisas do sexo e coisas sobre sexo: sexo é pecado? Já estou pronto (a) para ter minha primeira relação sexual? A primeira vez dói? O que é orgasmo? Sou homossexual? O que falar para meus pais sobre minha sexualidade? Sinto-me desconfortável junto ao meu namorado (a)!
Qual o tamanho de pênis? É possível aumentar o tamanho do pênis? O tamanho de pênis interfere no prazer sexual da parceira? Ficar é legal? Por que se ‘brocha’? Por que não consigo controlar meu esperma quando tranço? Como funcionam os remédios como o Viagra, Ciallis e outros? Não tenho desejo de fazer sexo, por quê?
Todas estas perguntas e muitas outras, já têm respostas, e nós do caderno Na Mira estamos com o proposito de ajudar nestas descobertas. Para isto você vai me ajudar a escrever este espaço semanal, e para isto, é só mandar suas dúvidas sobre sexo e o que você pensa sobre sexo.
Combinado?

Nos vemos na semana que vem!

terça-feira, 1 de maio de 2012

Psicanalista Jorge Forbes - A Ciência pede análise

Vou repassar o artigo escrito pelo Psicanalista Jorge Forbes e apresentado no VIII Congresso da Associação Mundial de Psicanálise ocorrido em Buenos Aires - AR de 23 a 27 de abril de 2012.
http://www.jorgeforbes.com.br/

  A Ciência pede análise

19/04/2012 16h30
Jorge Forbes

Estamos em um tempo de novas subjetividades. De um mundo que organizava seu laço social verticalmente - donde a aplicação e a importância na psicanálise do complexo de Édipo, uma estrutura também vertical – estamos passando para um mundo horizontalmente orientado, além do Édipo, que nos exige reformulações teóricas e clínicas radicais. Esse mundo, que assusta os que viviam no conforto da era anterior, vê tentativas desesperadoras de um suposto retorno ao passado, através de falsas garantias de neo-religiões, de livros de autoajuda e de messianismos técnico-científicos.

Não me incluo, entretanto, em uma corrente de psicanalistas que demonizam os cientistas alertando, com cara sisuda e de conteúdo, que devemos nos precaver contra os terríveis perigos que representam os avanços das pesquisas científicas, para uma vida qualificada. Não me parece sustentável afirmar que as pesquisas científicas, especialmente em Genética, são as grandes responsáveis pelas tentativas atuais de contabilizar o humano e dos absurdos ciframentos existenciais. Reconheço que essa ideologia está sobejamente presente em nossos dias, especialmente em um novo tipo de imprensa marrom, que transforma cada avanço genético em um degrau do paraíso. Desse mal, sofremos os psicanalistas, mas os cientistas sérios, também.

Em um de meus doutoramentos, no caso, exatamente em Ciências, na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, tive a ocasião de estudar não o que dizem sobre os cientistas, mas o que eles próprios dizem de suas descobertas.

Craig Venter, por exemplo, o primeiro a decodificar o genoma humano, afirma, em entrevista no dia 13 de abril de 2008, ao jornal O Estado de São Paulo: “Sim, os seres humanos são animais altamente influenciáveis pela genética, mas são também a espécie mais plástica do planeta em sua capacidade de se adaptar ao ambiente. Há influências genéticas, sim, mas acredito que as pessoas são responsáveis por seu comportamento”.

Christian de Duve, biólogo belga, Prêmio Nobel de Fisiologia/Medicina, em 1974, escreve em seu livro de 2009, Genética do Pecado Original, que a transmissão não é feita só pelo DNA: “É importante notar que a rejeição do lamarckismo concerne unicamente à hereditariedade transmitida pelo DNA. Os últimos anos viram a descoberta de muitas outras formas de hereditariedade suscetíveis de uma explicação lamarckiana.”

Na mesma orientação, encontramos o eminente biólogo britânico, Denis Noble, opositor das teses reducionistas de seu conterrâneo Richard Dawkins. Para Noble, “os genes não podem ser tomados isoladamente, mas como integrantes de um sistema múltiplo, como na gaita de foles”. Em seu livro de 2006, A Música da Vida, ele também põe em suspensão a dicotomia maniqueísta: Darwin x Lamarck – “É uma ideia consagrada que Darwin e Lamarck se opuseram sobre os mecanismos da hereditariedade. A verdade é que nem um nem outro, tinham a menor ideia desses mecanismos.” (p.164).

Por seu lado, a cientista brasileira Mayana Zatz, titular de Genética da Universidade de São Paulo, afirma que a facilidade em se obter o genoma pessoal, a cada esquina, está perto de ser verdade, o que ocasionará, em vez de certezas, um possível congestionamento nos consultórios dos psicanalistas, dada a imensa ansiedade que será gerada pela massa de informação sem sentido definido.

Não nos cabe a cruzada anticientífica. A incompletude humana não necessita de defensores, ela se impõe por si só e cabe aos analistas saberem estar no seu tempo, recolhendo os efeitos das novas sombras criadas pela forte luz dos avanços científicos. O que melhor para isso senão a clínica do Real, de Jacques Lacan?

Nessa vertente, e há seis anos dirigindo uma clínica de psicanálise, no mais influente centro de pesquisas genéticas da América Latina, passo a dividir com vocês algumas questões sobre as novas subjetividades, que põem em cheque todas as respostas anteriores, jurídicas, éticas, médicas e similares. Contarei dois casos, omitindo propositalmente a conduta que adotamos em cada um, para que vocês melhor participem dessas decisões difíceis e atuais. Extraio esses exemplos de minha prática na Clínica de Psicanálise do Centro do Genoma Humano da USP. Esses casos foram relatados de forma diversa, pela já citada Mayana Zatz, em livro recente: genÉTICA. São situações nas quais a Ciência pede Análise.

Uma jovem índia, grávida de seu terceiro filho, influenciada por uma assistente social, consegue fazer um exame pré-natal, para detectar a possibilidade do feto ser portador de um gene que causa distrofia muscular progressiva. Como a moça já tinha tido dois filhos, que manifestaram a doença depois dos três anos de idade, as autoridades da tribo, cacique e pajé, queriam sacrificar a criança ao nascer, para evitar possíveis problemas futuros. A assistente social esperava que o teste dando negativo, a criança seria poupada. Não levou em conta o caso contrário, os 25% de possibilidade de dar positivo. O que fazer com o resultado positivo: contar para a família, sabendo que o bebê será morto ao nascer? Não contar e fugir à obrigação de revelar o resultado? Disseram os juristas consultados que as duas posições eram passíveis de processo. Fato, aliás, que mostra a necessidade da revisão de nossas leis, obsoletas frente às novas questões colocadas pela ciência. O psicanalista é consultado: - O que vocês fariam?

Outro exemplo. João e Maria trazem Pedro, de quatro anos, para confirmar o diagnóstico de uma grave doença neuromuscular que os aflige e também querem saber o risco de terem mais filhos com o mesmo problema. João especialmente se martiriza, pois, quando herdada, trata-se de uma mutação transmitida pelo pai. O exame confirma a doença, mas, ao mesmo tempo, mostra que João não é o pai da criança. Mais uma questão aos juristas e a todos. De novo o psicanalista é consultado: - O que vocês fariam? Como havia comentado, os resultados genéticos mais inquietam que determinam a justa conduta. Aproveito para informar – o que não é sem importância para psicanalistas - que foi constatado que o pai biológico é outro, em 10% dos casos estudados. A Inglaterra apresenta a mesma porcentagem.

Em âmbito diferente, mas em igual vertente lógica, fomos convidados a participar da audiência de esclarecimento que o Supremo Tribunal Federal brasileiro promoveu para se preparar, não faz muito tempo, ao voto da legalidade das pesquisas com células tronco embrionárias. A questão básica era a de quando começa a vida, pergunta cuja resposta ultrapassa os domínios da biologia e da ciência em geral. Os biólogos e os juízes entenderam ser importante incluir a psicanálise de orientação lacaniana, na opinião e no debate.

São essas as razões aqui apenas esboçadas, caros colegas, que me levam a entender que o psicanalista de hoje deve se preparar para responder à crescente demanda de análise originada das novas subjetividades produzidas, em uma época de supremacia do Real.