Trabalho apresentado na VIII Jornada da Delegação Geral Maranhão da Escola Brasileira de Psicanálise - "Trauma e Violência no mundo contemporâneo"
Silvana Sombra*
Na minha vivência de anos na clínica médica,
ouvindo falas diversas tendo como centro o corpo, testemunho desde então o que
escapa à ciência. Os pacientes que não se conformam em tanto sentir e nada
retratarem em seus exames clínicos e laboratoriais, e os que nada sentem e se
encontram ali questionando tantas alterações evidenciadas em exames: “mas como
se não sinto nada?”. No primeiro caso às vezes um profissional médico o
encaminha a um profissional da área psi, no outro há quase um alívio em se
tratar uma enfermidade sem queixas. Há ainda os casos em que não há resposta ao
tratamento médico, são transtornos corporais em que não se pode diagnosticar
como enfermidade orgânica, são os casos em que a falha se faz real no corpo do
paciente, seria o psicossomático, que Lacan coloca nos termos de falha
epistemo-somática1. Na psicossomática o sujeito cessa de ser representado,
havendo a falta da descontinuidade, não há uma articulação significante, mas podemos
dizer que ele situa-se nos limites da linguagem, contornando a sua estrutura,
não indexado ao outro do significante, mas muito próximo do traço unário. Haveria nesses casos resposta ao tratamento
psicanalítico, já que ele lida com o significante?
O que é sintoma para a Psicanálise?Freud assim
define o sintoma: “O sintoma é substituto de uma satisfação pulsional que não
se realizou”. Na psicanálise vemos que não há uma correspondência entre ser e
pensar: são antinômicos. O sintoma então é o substituto da doença, é a metáfora
dela, ou seja, é a própria doença. Sua manifestação é essencial e vem do
inconsciente, daquilo que temos de mais desconhecido de nós mesmos e revela o
que temos de mais verdadeiro. Como exemplo temos um paciente que procura
análise para “salvar” seu casamento trazendo o sintoma que ele conhece como disfunção sexual, desejo extraconjugal e descobre durante o percurso o contrário do
que veio propor. O que então o sujeito traz como sintoma, podemos dizer que é o
significante que veio no lugar do sintoma, pois este é ignorado por ele ao
mesmo tempo que o representa.
O que fala um corpo? O que se fala de um corpo?
O que se fala com um corpo? Vários saberes tentam articular resposta ao que não
cessa de nos interrogar, não cessa de se inscrever. A psicanálise assente que o
corpo não fala, fala-se com um corpo. Podemos dizer que a psicanálise, a ciência
e a arte colocam diferentes abordagens sobre esse real do corpo.
Ao falar dirige-se a voz diante de um Outro,
para que seja ouvido e então o responda. Falar implica o desejo e a castração,
visto que outro corpo é necessário para assegurar o corte do qual o sujeito se
desprende e se recobre. A fala, esta tentativa de chegar ao outro, inaugura no
corpo um acontecimento que o divide e o lança no campo do desejo e do gozo, e é
aí que a medicina tomando o corpo como um sistema homeostático em sua dimensão
animal, o organismo biológico dado pela ciência médica, deixa de fora esse
sujeito desejante e gozoso. O animal como lembra Jacques Allain Miller em
“Biologia lacaniana e acontecimentos do corpo”, não se desvia do que tem a
fazer, do que é impulsionado: “quão mais discreta, mais tranquila e mais certa
é a vida que não fala”. Escuta-se na medicina, uma escuta médica, os dizeres de
um corpo e opera-se no campo do discurso do mestre onde há o saber consistente
do que é normal e patológico, há um saber escrito no biológico e o médico o
estuda, simboliza esse real, é o sujeito do saber. Já na psicanálise há um outro
corpo em questão, aquele em que a medicina não conseguiu extrair saber, é o
saber do inconsciente que é singular, que chama a ser decifrado, está em outro
lugar, o lugar do Outro, que só existe pela transferência e esse corpo, o que é
mais importante, é habitado por um gozo. E é nesse ponto que a medicina no
campo da fala cede o lugar para a psicanálise.
Pululam na fala do sujeito os dizeres sobre um
corpo, embrenhado no simbólico ele demanda o que desconhece em suas entranhas,
o saber médico responde a esse sintoma médico. Algo a mais escapa, em se
tratando de corpo temos para além da demanda da cura o gozo do próprio corpo.
Algo está feito para gozar, gozar de si mesmo, é o que encontramos na
perspectiva lacaniana acerca do corpo. Lacan em um colóquio sobre ‘O lugar da
psicanálise na medicina’, coloca: “quando o doente é enviado ao médico ou
quando o aborda, não digam que ele espera pura e simplesmente a cura. Ele põe o
médico à prova de tirá-lo de sua condição de doente, o que é totalmente
diferente, pois isto pode implicar que ele está totalmente preso à ideia de
conservá-la. Ele vem nos pedir para autenticá-lo como doente. Em muitos outros
casos ele vem pedir, do modo mais manifesto que vocês o preservem em sua
doença, que o tratem de maneira que lhe convém, ou seja, aquela que lhe
permitirá continuar a ser um doente bem instalado em sua doença”2.
Se o que
se fala de um corpo corresponde a um real, certamente é o da ciência, não o real
inassimilável, que é o da psicanálise. Máquinas, equipamentos moderníssimos
rastreiam esse corpo em que habitamos. Ao olhar uma ressonância é o estranho
que se evidencia, sabe-se que há um padrão e fora desse o patológico, há quem o
saiba, no caso o médico, através da ciência e dará respostas, mas quão alheio
se está em relação a esse funcionamento! Nenhuma tomografia craniana mostrará
as aflições; as angústias não aparecem em nenhum exame bioquímico; onde estamos
nesse que desconhecemos? O sujeito está fora dessa investigação, invisível. Eric Laurent em seu texto ‘Falar com seu
sintoma, falar com seu corpo’ explicita: “O corpo simbólico é a linguagem, o
conjunto dos equívocos da língua. O imaginário é o que permite nos virarmos, o
modelo. Mas o que pode ser o corpo real? Para Lord Kelvin é isso que a ciência
se recusa a admitir, tem-se um modelo, mas não se sabe o que é o corpo real. A
esse respeito não há hipótese”3.
No falar
do corpo, vamos encontrar as frágeis coordenadas simbólicas norteando um
modelo, o imaginário. Indo mais além no campo da psicanálise falar com um corpo
pontua o encontro do significante com o gozo, tratando-se da pulsão na fala ou
linguagem e pulsão. Na medida em que se
fala sobre um corpo fala-se com ele, o falasser precede, o falasser usa o corpo
para falar. Falar ardo de febre, doi o corpo, tenho calafrios, chama o saber médico; ao falar ardo de amor, estou de
forma insuportável devastado por esse sentimento, porque estou assim? Pode-se fazer um outro endereçamento, ao
psicanalista. O falasser usa esse corpo para produzir o sintoma analítico,
mostrando aí um para além do necessário saber médico.
No caminho percorrido pela psicanálise podemos
dizer que em Freud temos uma lição apreendida das histéricas que é um falar com
um corpo, que depois Lacan coloca como um corpo do significante, que fala algo
deste corpo, para então em seu último estudo colocar como o corpo do gozo, o da
gramática da pulsão, onde toda emissão da palavra é pulsional, corpo onde ecoa
um dizer e haja psicanalistas para essa escuta necessária.
*Médica, AP, participante da Delegação Geral
Maranhão/ EBP
NOTAS
1.
Lacan, J (1985). Psicoanálisis y medicina. In Intervenciones y textos, 92.
2.
Miller, J. –A (2001). O lugar da psicanálise na medicina. Opção Lacaniana 32,10
3.
Laurent, E (2013). Falar com seu sintoma, falar com seu corpo. Correios 72, 20