Carmen Damous
No seu terceiro ensaio da sexualidade, em
1905, Freud imprime o que considera a mais dolorosa das metamorfoses da
puberdade, o “desligar-se da autoridade dos pais”, não propriamente dos pais em
carne e osso, mas do que incorporou, via identificação com os pais, que
internalizados, integram o super eu, herdeiro do complexo de Édipo.
Diz ainda que “unicamente através do desligamento da autoridade dos
pais, se cria a oposição, tão importante para o processo da cultura, entre a
nova e a velha gerações.” Esse “desligamento” remete a Lacan que situará a
possibilidade de um sujeito responsabilizar-se por seu gozo ao “ultrapassar o
pai, servindo-se dele”, de forma que, a crise da adolescência possa ser
denominada “crise do pai”, em ultima instância. Trata-se de reinventar a figura
do Pai, construir semblantes que substituam ou alternem com a função pai, pois
só assim haverá desligamento e como ultrapassá-lo, servindo-se dele.
São
decorrentes da tensão que se estabelece com a puberdade, os impasses entre
alienação e separação. O processo de alienação, relativo ao encontro do sujeito
com a linguagem, que o precede antes dele existir, traz dessa passagem do
sujeito alienado ao sujeito separado, algumas implicações. O movimento de desenraizamento
do Outro, através da operação de separação, coincide com a travessia da
fantasia, fantasia como uma defesa contra o real?
É diante da
fotografia para o álbum de família, onde o pai, sargento da ROTA, impecável em
seu uniforme e a mãe, também policial militar, com um sorriso tímido para a
câmera, estão ao lado do menino que abraça orgulhosamente o pai, policial
condecorado; fotografia esta que passou a ilustrar as múltiplas reportagens
sobre a chacina que atingiu a família de classe média paulistana, onde cinco
integrantes foram mortos: pai, mãe, avó, tia-avó e o filho do casal.
Para
a polícia, o principal suspeito do crime é o filho do casal, de treze anos de
idade que, depois da chacina teria ido ao colégio, dirigindo o carro da mãe e
lá revelado a alguns colegas que havia matado os pais, a família inteira, o que
não acreditaram. Ao retornar para casa ao meio dia, de carona com um
coleguinha, deu-se conta do vazio e se mata.
Apesar
de juristas e o senso comum questionarem este laudo, foi finalmente atestado a
veracidade das primeiras suspeitas.
O
garoto teria confessado a um amigo que tinha “o sonho de ser um matador de
aluguel”. Era fã de games violentos. Um estranho sonho profissional, um sonho
que vai além do Édipo, onde sem pai, sem norte, “sem bússola” como diria Jorge
Forbes, por caminhos distintos, como um enigma diante de desejos contraditórios
ao fazer escolhas, diante da encruzilhada a ser atravessada pelo sujeito, nos
faz ver a “impossibilidade da transmissão da lei paterna à altura do imperativo
de gozo”: “O real em jogo na puberdade”.
Para
Miller, o Seminário 6 de Jacques Lacan, “é feito para ir além do Édipo, na
direção da fantasia. E essa relação ‘S barrado, punção, pequeno a’, essa
relação afinal binária, com múltiplos sentidos, lhe parece mais profunda que a
triangulação ou a quadrangulação edipiana.”
Segundo
Miller, no Seminário 7, “Lacan vai mostrar que o lugar principal é ocupado não
pelo Nome-do-Pai, mas pelo que ele chama de a coisa, a saber, o gozo. A coisa
vem no lugar do Nome-do-Pai, que acabara de ser destronado.”
No
Seminário 11, cita ainda Miller, “Lacan explica que não há Outro do Outro, que
significa que não há o Nome-do-Pai, no máximo, há nomes-do-pai.”
Para
este adolescente, “calmo, tímido, caseiro, apegado aos familiares”, quais são
as chances para que o sujeito possa valer-se da herança paterna, no momento em
que, na adolescência, precisa ultrapassá-lo?
O
contexto atual com “novas formas de sintoma”, em que os ideais dão lugar aos
objetos feitos para gozar, numa sociedade “hipercapitalista”, interfere nos
processos identificatórios, produzindo alterações na constituição do Ideal do
Eu, previsto por Freud e Lacan como “apaziguador” da ferocidade do “super eu”.
Podemos considerar as identificações hoje como diferentes soluções e defesas ao
real como impossível de suportar.
Na atualidade,
que estatuto para o Ideal do Eu que, enquanto insígnia fálica, possa permitir
ao sujeito, frente ao declínio do Édipo, transformar o gozo perdido em causa
maior, a causa do desejo?
Referências
Bibliográficas:
- Freud, S
(1905). “Três ensaios sobre a sexualidade”. Vol
VII. Imago, 2006.
- Lacan, J
(1976). Le Sinthome (aula de 13/04/76).
-Lacan, J (1964).
Seminário 11.
- Miller, J. –
Alain (2013). “Uma reflexão sobre o Édipo e seu mais além.”