A comédia dos sexos, que tem sua versão lacaniana mais acabada no Seminário XX, é uma clínica em que homens e mulheres buscam sua posição sexual a partir de uma alteridade que nunca se transforma em complementaridade. Não se trata, portanto, apenas do falo como o triunfo do cômico, mas da ironia do objeto. Assim, homens e mulheres jamais se completam sexualmente diante do Outro sexo. Homens e mulheres não formam casais onde há um puro elemento viril, correlato ao falo, e um puro elemento feminino, correlato à castração. Somos todos, independentemente do sexo biológico, afetados pelos restos da operação falo/castração.
Ao pensarmos o feminino hoje, percebemos que há um corte entre o século XXI e o século precedente, corte no sentido de que algo do real fez surgir um acontecimento. De todas as imagens, nenhuma traduziria melhor o real dessa ruptura do que a agonia das torres gêmeas. Com elas foi junto o resto de esperança de uma unificação pelo simbólico. Assim, o mundo em que problematizamos a mulher dispensa consensos, pois o gozo feminino incômodo não mais convoca necessariamente o traço de identificação feminista. É um mundo em que predomina a cacofonia dos discursos e a pluralidade de expressões dos modos de viver a pulsão. O pano de fundo é o matema, proposto por Jacques-Alain Miller,a →$
Há, nesse matema, a escritura de uma nova posição do objeto na civilização, o que não deixou de repercutir nas coordenadas da fantasia masculina. A percepção dessa mudança ecoa no deslocamento que faz Lacan sobre a operação castração. Em 73, no texto Étourdit, ele afirma que o heterossexual é aquele que, independente de seu próprio sexo, ama as mulheres. Aqui, não se trata mais da diferença anatômica entre os sexos. Seu propósito, como diz o próprio Lacan, é revisar a noção de que a função fálica se apoiaria em um “fânero” suplementar ao corpo da mulher para torná-lo um organon específico dessa função. Esse deslocamento não deixa de trazer consequências para o entendimento psicanalítico da vida amorosa, mais precisamente para a distinção entre o “fazer amor” e o “ato do amor”. O primeiro, para Lacan, é da ordem da poesia. Já o “ato de amor” resvala para a “perversão polimorfa do macho”. O homem busca revestir o objeto com semblantes fálicos para não enfrentar o olhar da medusa, velando a castração. Nesse sentido, quando o discurso amoroso – endereçado aos semblantes – fracassa, a mulher cai da condição de Dama e o Um do amor se desfaz. A cena torna-se muda, e o corpo feminino uma montagem de peças avulsas que explodem na internet.
Se Madona era protagonista de uma geração que se hipnotizava com a girl phalus, encontramos em Lady Gaga, alçada pela imprensa papparazi à categoria de ícone da geração atual, uma situação muito distinta. Aqui não podemos mais falar da aliança entre o feminino e o falo. Lady Gaga, ao aparecer na capa da Vogue em um roupa feita de carne crua, demonstra a ironia do sex-appeal bruto do objeto a lacaniano.
Se Madona era protagonista de uma geração que se hipnotizava com a girl phalus, encontramos em Lady Gaga, alçada pela imprensa papparazi à categoria de ícone da geração atual, uma situação muito distinta. Aqui não podemos mais falar da aliança entre o feminino e o falo. Lady Gaga, ao aparecer na capa da Vogue em um roupa feita de carne crua, demonstra a ironia do sex-appeal bruto do objeto a lacaniano.
Como afirma Miller, o gozo se libera da armação significante de sua prisão fálica e ... demonstra-se, ao contrário, que são os objetos a que dão corpo ao gozo. A seguir essa lógica, percebemos que o gozo fálico (-φ) não é mais o único comando do Supereu no Século XXI, o imperativo de gozar incide cada vez mais sobre o gozo de a, sem mediação. Eis que a segunda parte de nosso título nos coloca um desafio: qual a especificidade do feminino no discurso da psicanálise?
A escolha da fotografia de uma mulher para representar nosso XIX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano evoca essa percepção de que a mulher não é mais cortejada por uma discurso e sim pelas lentes cada vez mais presentes na vida cotidiana. Os cabelos esvoaçados fazem dessa mulher uma miragem; mistura de musa e de medusa. Contemplando o mar de Salvador, ela nos esconde seu olhar. O que pode acontecer se ela virar sua face em nossa direção?
Nos dias 23 e 24 de novembro, estaremos compartilhando esse mesmo olhar, tentando descobrir o infinito do mar que esse horizonte alcança. Nosso encontro está marcado no Hotel Pestana, bairro do Rio Vermelho, banhado pelas águas de Iemanjá. Contamos com a presença de todos vocês.
Axé,