quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

A GRAMÁTICA DO LACANÊS


Este texto foi publicado no site  http://www.ipla.com.br/index.php?id=404


Autora: Claudia Riolfi


Já passou da hora de os psicanalistas diferenciarem um amontoado de palavras de algo que merece o nome de texto

Não é raro encontrar leitores se queixando da falta de clareza e de inteligibilidade de textos assinados por psicanalistas. É mesmo necessário que seja sempre assim? Não acreditamos. Na esperança de que esta queixa não revelasse uma tendência, nós examinamos um grande número deles. Descobrimos que muitos são bem escritos, mas outros, ai meu pai: ora não se encontra o sujeito da frase, ora as imprecisões não permitem decidir por um ou outro sentido, ora a oração não terminou e por aí vai...


É pena. Ao se deparar com este tipo de escrita, os jovens tendem a achar que o problema de compreensão está com eles. Não percebendo que o texto precisa estar escrito no vernáculo para ser compreendido, as novas gerações tomam a falta de legibilidade como se fosse deles e, o pior, acabam pensando que a psicanálise é algo difícil demais.

Por que os analistas se recusam a utilizar a língua portuguesa e insistem em escrever em lacanês? Porque vacilam na execução dos procedimentos necessários para reinventar a prática clínica e reescrever a psicanálise. Fascinados com o heroísmo das gerações precedentes, as novas gerações não conseguem fundar para si um lugar enunciativo único. Papagaiam. Ao escrever, limitam-se a repetir as palavras de seus mestres de maneira irrefletida e atemporal.

Para além do efeito cômico, este mimetismo faz com que fiquem no limbo. Consequentemente, seus textos estão sujeitos a uma gramática bastante peculiar, fora das leis da linguagem comum. Para não ferir suscetibilidades, forjemos um exemplo, muito parecido com os excertos que de fato são produzidos por colegas. Suponhamos que um psicanalista, ao tentar discorrer a respeito de sua clínica, tenha escrito o que segue: “Em minha reflexão, busco submeter os conceitos da psicanálise à prova clínica visando a forçá-los a produzir novas elaborações.”.

Tal excerto, caso lido por um psicanalista jovem, poderia gerar muita dúvida. Como assim? São os conceitos ou as pessoas que trabalham? Para responder a isto, analisemos a retomada anafórica por meio do uso do pronome “los”. Ele retoma o sintagma “os conceitos da psicanálise”. Deste modo, conclui-se que uma paráfrase possível da oração forjada por nós é: “Eu forço os conceitos a produzir novas elaborações”.

Gente, que conceitos produtivos e animados! Seria até bonito de ver os conceitos, magicamente, elaborando a psicanálise, sob a chibata dos psicanalistas transformados em feitores de conceitos-escravos, mas, infelizmente, tal coisa só ocorre na fantasia de nosso autor fictício. Haja prosopopeia e paciência!

Os efeitos deste tipo de escrita que aqui forjamos à guisa de exemplo tem afastado a sociedade civil da psicanálise e colaborado para aumentar a suspeita de falta de rigor e de misticismo que sempre pesou sobre nossa práxis. O país está cheio de bons professores de Língua Portuguesa que podem ajudar. Não podemos mais tolerar esse tipo de “texto”. Basta de assassinar a gramática, a lógica e a paciência dos leitores.

Esconder-se por detrás de palavras ambíguas, no caso da redação de textos que têm como objetivo transmitir a psicanálise não é análogo ao ato de equivocar na clínica. É mais passível de comparação com o ato de se esconder embaixo da cama de mamãe! Lacanês é encobrimento de ignorância e de preguiça, não é trabalho.

Chega de lacanês!