terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

CULPA E CORRUPÇÃO

Este texto foi publicado no site http://wapol.org/pt/global/Lacan-Quotidien/LQ-366-BAT.pdf

Culpa e corrupção*

por Miquel Bassols

Os laços inconscientes entre corrupção e  sentimento de culpa são bastante paradoxais. São fonte de toda sorte de hipocrisias. E seu segredo pode  permanecer um mistério para cada um. A historinha contada pelo  humorista americano Emo Philips resume isso muito bem: «Quando eu era pequeno, rezava todas as noites para ter uma bicicleta nova. Depois,  me dei conta que Deus não funciona assim. Então, eu roubei uma bicicleta  e rezei por seu perdão.» É nesse paradoxo que o sujeito de nosso tempo experimenta seu laço com o gozo e com a falta. O cinismo do argumento  não exclui a miserável verdade que fica escondida nessa operação: é preferível crer na absolvição da falta, na impunidade do gozo imediato, do que no desejo que, por si só, faria com que se merecesse esse objeto de desejo. A psicanálise descobre essa equação nas sutilezas do sentimento de culpa: existe somente a certeza e a constância de um desejo, para me fazer responsável por um gozo, que eu jamais obteria impune.

É, sem dúvida, uma das razões que faz com que, nos rankings internacionais, os países que menos sofrem de corrupção sejam os países mais influenciados pela tradição luterana. Tal tradição experimenta maior desconfiança quanto à confissão dos pecados, que permite a absolvição e a impunidade do gozo. É ainda uma tradição que criticou radicalmente o tráfico de indulgências – a compra do perdão -, princípio de toda corrupção. Ao argumento utilitarista do humorista americano, o sentimento de culpa responde isto: não existe gozo impune. Seu desejo por uma bicicleta tem um preço, que você não pode negociar.
 
Soma-se a este argumento a crença na reciprocidade do gozo – se o outro faz, eu também posso fazer –, a lógica do vírus da corrupção está assegurado, mesmo no melhor dos mundos possíveis.
 
Logo, não é surpreendente que todos os historiadores que se debruçam sobre o fenômeno da corrupção a concebam como um fato ineliminável e inerente ao ser humano, em todas as sociedades e culturas, ora como um mal menor, ora como o princípio mesmo de seu funcionamento. A corrupção seria assim «um fenômeno inextirpável, porque respeita, de maneira rigorosa, a lei da reciprocidade», como escreve Carlo Brioschi, em sua Brève histoire de la corruption1. Segundo essa lei, nenhum favor é desinteressado, e gozar de uma prebenda será sempre justificado. Da mesma forma, essa lei de reciprocidade autoriza cada um a gozar, sem sentimento de culpa, daquilo que o outro goza.
 
 
Por conseguinte, tudo aparece como uma questão de grau: o gozo suposto ao outro é um pouco mais ou um pouco menos importante que o meu? A troca recíproca de prebendas é maior ou menor? Acontece o mesmo com as concessões conferidas para se obter o objeto de gozo: essa bicicleta que cada um exige como um direito que lhe é devido. A crença no Outro que pode perdoar e no Outro que contabiliza o gozo está no princípio da comercialização e de boa parte dos laços sociais. Na realidade, é uma crença tão religiosa como qualquer outra.
 
Em nome dessa crença, pode-se admitir toda corrupção como relativa ao tempo e à realidade em que se vive. Assim, quem ousaria sustentar hoje como politicamente correta esta frase do grande Winston Churchill: «Um mínimo de corrupção serve de lubrificante benéfico ao funcionamento da máquina da democracia»? É unicamente por uma questão de grau que ela se difere das afirmações sustentadas, há algumas semanas, por Luís Roldán, exemplo paradigmático da corrupção da sociedade espanhola de nosso tempo, em uma entrevista concedida à imprensa: «A corrupção era e é estrutural.»

Trata-se apenas, dirão vocês, de um problema de linguagem, da significação que se dá às palavras, para se sentir um pouco mais à vontade diante da justificativa intelectual do fenômeno irredutível da corrupção. Mas, então, essa afirmação de Jacques Lacan será ainda mais certeira: «O maior corruptor dos confortos é o conforto intelectual, como a pior corrupção é aquela do melhor.»2. O que quer dizer também que a primeira corrupção é a corrupção da linguagem, quando se começa a ceder sobre a significação das palavras, a que modula e determina a significação dos nossos desejos.

 
Por isso, vejamos: por que vocês queriam então possuir esta bicicleta?
 
*A ser publicado, em breve, em um dossier «Culpabilité et jouissance» do suplemento Cultura/, no jornal de Barcelona La Vanguardia.

 1Brioschi C. A., Breve storia della corruzione: dall'età antica ai nostri giorni, Milano, Tea, 2004.
 
 2Lacan J., Écrits, Seuil, Paris, 1966, p. 403