domingo, 5 de junho de 2011

A FREIRA E O CONDENADO – UM CASO DE GOZO


A FREIRA E O CONDENADO – UM CASO DE GOZO
Ernesto Friederichs Mandelli – psicanalista


A ideia de escrever uma breve reflexão sobre o amor e as mulheres (não existe A MULHER, mas UMA MULHER, elas são feitas uma a uma, pelo fato de não haver um conjunto que as represente.) dentro de uma visão psicanalítica, aconteceu quando da escolha do filme “Os Últimos passos de um homem” a ser comentado numa das próximas sessões de Cinema e Psicanálise, atividade da Delegação Maranhão da EBP. Sempre é, para mim, um exercício delirante dar um recorte específico entre a mulher e o amor, pois se têm vários vieses para abordar o referido tema.

O filme conta a história verdadeira passada na Lousiana USA onde a freira católica Helen Prejean (Susan Sarandon) passa a ser a guia espiritual e a lutar pela vida de um homem Matthew Poncelet (Sean Penn) que espera ser executado a qualquer momento, por ter assassinado dois adolescentes, sendo que uma das vítimas era uma jovem que foi estuprada antes de morrer.

Desejo fazer um recorte no assunto, o envolvimento de Helen com Matthew, baseado em algumas cenas do filme. Os envolvimentos entre homens e mulheres são diferentes dos que os que ocorrem entre as mulheres e os homens. O envolvimento dele com ela não será objeto de análise, mas apenas o de Hellen com Matthew. Proponho uma reflexão através de algumas questões: É possível o amor não erótico? O que faz Hellen se posicionar ao lado de Matthew ficando contra a sociedade e o próprio capelão da prisão? Quem é ele para ela? Que tipo de afeto toma conta dela?

Para o psicanalista e escritor Juan Nasio, em seu livro ”Um Psicanalista no Divã” é possível amor não erótico. Nasio faz uma distinção entre o amor e a amizade. Esta, a amizade , tem como característica não ser erotizada, ser recíproca e não produzir ciúme, pois não é possessiva. O amor, nesta perspectiva sempre será erotizado, exige exclusividade e produz ciúme.  Também se encontra no seminário XX uma referência ao que Lacan (1982) chama de amor cortês “è uma maneira inteiramente refinada de suprir a ausência de relação sexual”.

O amor é sempre um encontro imprevisto, diz Lacan, é um instante que atinge os três registros, o Imaginário, o Simbólico e o Real. Este encontro imprevisto aconteceu quando do encontro de Hellen com Matthew ela passa a duvidar das provas, se torna sua defensora e conselheira espiritual. Passando pelas ordens do Imaginário e do Simbólico, vamos nos deter no Real, pois como escreve Sônia Vicente (2006) No registro do real, o amor visa o ser, que permanece em fuga perpétua, reduzindo-se, sem o saber, à relação com o objeto da fantasia”.

Lendo o trabalho de Sônia Vicente - Amor Louco - é possível seguir algumas pistas que indicarão possíveis respostas. A psicanalista referendando Lacan diz que um homem é para uma mulher aflição e devastação. Os conflitos falados pelo homem se tornam a sua aflição e devastação. Em vários momentos do filme, quando Matthew vai contando o que viveu e o que sentiu, pode-se perceber a aflição de Helen e quanto mais se aproxima a hora da execução percebe-se a sua devastação.

Lacan, fazendo um contraponto à erotomania, sabiamente vai nos dizer que um homem é para uma mulher aflição e devastação, ou seja, são duas designações que implicam a ideia do “pior”, por serem mais danosas para o sujeito do que um sintoma. A devastação, podemos defini-la como a demanda de amor dirigida ao parceiro, que retorna sobre o sujeito feminino, sendo, então, mais o confronto com o silêncio do que com a palavra do Outro. Nesse sentido, a mulher, na posição de devastada, pode ser conduzida, por não se sentir reconhecida por um homem, à privação extrema, à morte. Mas pode ser conduzida também a um estado de deslumbramento, de felicidade extrema. Portanto, a devastação revela-se como a outra face do amor, que se apresenta fora sentido, fora sexo; um fenômeno que não conhece limites, cuja ressonância se traduz em um: “você é apenas o que eu sou”. VICENTE, Sônia – AMOR LOUCO.

Freud em sua conferência XXXIII intitulada ‘Feminilidade’ faz uma afirmação que o que constitui a masculinidade e a feminilidade é uma característica desconhecida e que foge ao alcance da anatomia. É possível conhecer esta característica? Lacan afirma que a ‘a mulher não existe’, amplamente comentado em vários textos e inúmeras abordagens. Através das fórmulas quânticas da sexuação propostas por Lacan, demonstra-se que a mulher por não ter um significante que a represente não vem fazer parte de um conjunto fechado, mas sim de um conjunto aberto e infinito. De onde se conclui que não existe uma lei que possa generalizar as mulheres.

É possível entender como Hellen se posiciona no oposto da maioria, isto é, ao lado de Matthew. Ao recorrer a Jacques Alan Miller em seu livro “Parceiro-sintoma” este afirma que a causa de desejo da mulher é o “amor louco” e que seu modo de gozar é a devastação. Afirma também que sua estrutura é “incompleta-não toda” e que sua medida é o excesso. Coloca nesta obra ainda, que os ideais femininos chegam através do homem.

Ao perceber a dedicação de Hellen para com Matthew aumentando na medida em que se aproxima o dia da execução, cabe uma pergunta: Pode-se associar o ‘outro gozo’ feminino com a pulsão de morte?

A dialética dos gozos mantém toda uma lógica relativa à pulsão de morte e à pulsão sexual. Pois sendo a pulsão sexual interditada, inconsciente, ela estará necessariamente sob o domínio da significação fálica, e o gozo, por sua vez, também terá que passar por aí. É só a partir do significante que podemos traçar o que fica fora dele. O gozo ilimitado, místico, pertence à pulsão de morte. O gozo a que temos acesso é submetido à lei do significante falo, logo responde à pulsão sexual, essa estranha combinatória do real do gozo com o simbólico do significante - o que de morte se impõe à vida. TOLIPAN, Elizabeth – OS PARADOXOS DO GOZO.

Um momento interessante no filme é quando o capelão pergunta a Hellen se já estivera antes em um presidio e mediante a resposta que era a primeira vez, faz uma advertência que seria usada por Matthew e que o uso do hábito de freira poderia mantê-lo afastado. Usando a característica histérica de se excetuar, ela comparece ao primeiro encontro (e a todos os outros) sempre vestindo roupas comuns.

Outro ponto do filme que chama a minha atenção é quando o advogado chamado por ela para defender o condenado em sua apelação, diz que ela era a primeira mulher a ser conselheira espiritual de um morador do corredor da morte, e como precisaria passar muito tempo inclusive o dia todo que antecedia a execução isto seria feito melhor por religiosos homens. Mesmo com estas ponderações, a freira insiste em continuar em seu intento. Que ‘estranho’ prazer Hellen sente ao frequentar um lugar de homens a espera da morte e sem mais nada a perder? É possível encontrar a resposta no texto de Elizabeth Tolipan quando escreve sobre Os Paradoxos do Gozo:

Mas há em todo sujeito uma dimensão de risco, de risco de vida, devido à pulsão de morte. E é aí nesse ponto onde se goza. Esse é um risco de vida mesmo, que pode aparecer em pequenos atos excessivos, no cotidiano, como dirigir em alta velocidade, comer muito, beber muito (sempre referente a excessos). Não há sujeito que não corra tais riscos. E se ele existe - o risco, uma dimensão além do prazer estará em jogo. E o gozo quando não articulado ao significante, predominantemente pulsão de morte, é experimentado como sofrimento. TOLIPAN

Ao se tornar sua conselheira espiritual, ela passa a escutar as palavras que Matthew lhe fala, e como diz Lacan em um de seus seminários que o gozo sexual passa pela palavra e não pela relação sexual. Ele também relaciona o gozo com o saber e a verdade, as duas coisas que estavam em jogo na fala escutada por Hellen.

Lacan já no final do seu ensino, afirma que o amor é uma tentativa de suprir a impossibilidade da relação sexual. A mulher Hellen já havia escolhido um dos seus gozos, o de não ter vida sexual que lhe permitiria sentir o amor-paixão, e por isto, se dedicasse aos serviços de caridade como uma forma de sublimar este gozo. Então outra questão é o que a faz se envolver com Matthew? A resposta está também no texto do Sonia Vicente, onde um gozo maior toma lugar deste gozo fálico. O gozo do Outro.

O amor-paixão é desejado, na condição de jamais admitir o seu sentido real, ou seja, o fato inconfessável de que ele está ligado à morte. Quem confessaria que deseja o aniquilamento do seu ser? Então, paradoxalmente, todo obstáculo ao amor é o que vai sustentá-lo, para exaltá-lo, no obstáculo absoluto, que é a morte. Lançar-se ao instante supremo do prazer total, alcançar o Nirvana, é morrer. Não sem motivo, em francês se diz “La petit mort”, para se referir ao orgasmo. VICENTE, Sônia – AMOR LOUCO.

Longe de apontar respostas universais para as questões formuladas anteriormente, desejo apenas provocar reflexões que orientem a experiência psicanalítica de abrir (desejo) e fechar (gozo) somente permitido a quem se atreve a fazer um processo de análise pessoal.


REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Marizabel - A MULHER E O AMOR – trabalho apresentado em 18/06/2005 na Escola Lacaniana da Bahia.
FREUD, Sigmund – FEMINILIDADE – Versão Eletrônica da Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud – Vol XXII – IMAGO.
LACAN, Jacques – SEMINÁRIO XX – mais, ainda – 2ª Edição – Jorge Zahar Editor – RJ – 1985.
MILLER, Jacques-Alain – EL PARTENAIRE-SÍNTOMA  - 1ª ed. - Buenos Aires: Paidós,2008.
NASIO, Juan-David – UM PSICANALISTA NO DIVÃ – R.J. – Zahar / 2003
VICENTE, Sônia – AMOR LOUCO - Trabalho apresentado na XII Jornada EBP-BA / Declínio do Amor e Círculo Psicanalítico da Bahia XVIII jornada /Novas dificuldades da clínica psicanalítica/ 2006. 
TOLIPAN, Elizabeth – OS PARADOXOS DO GOZOLetra Freudiana-Ano XI-ns 10/11/12